Há em nossa História de país de colonização europeia mancha impossível de ser esquecida, embora compreendida no tempo monárquico, que se ornou de desumanidade e de absoluto desrespeito à condição humana dos que, acorrentados e jogados em porões fétidos de navios onde nem comida digna lhes era servida, aqui aportavam como objetos escolhidos e comprados a partir de processo seletivo que os identificava pela capacidade de realizar atividades que não cabiam no conceito de nobreza de quem os adquiria e explorava.
Estou a falar, evidentemente, dos muitos africanos que para aqui foram trazidos pela elite luso-brasileira e que neste canto do mundo foram explorados, desrespeitados, ofendidos e não reconhecidos como detentores de quaisquer direitos. E não eram escravos porque haviam nascido em algum lugar da África, mas porque eram negros.
Nenhum direito, nem mesmo ao pátrio poder. Filhos de escravos nasciam escravos e eram, por isso, propriedade dos donos de seus pais. E assim deu-se até que, por primeira conquista, foi lavrada lei que restou conhecida como “do ventre livre”, em verdade o início do rompimento com o ciclo vicioso e interminável de escravização. E o Brasil deixou de “produzir” escravos a partir de setembro de 1871. Mas tal “conquista” reportava-se apenas aos que nascessem dali em diante, sem conceder liberdade, portanto, para os filhos de escravos a quem também já não se concedia a cidadania.
Quatorze anos depois, em 1885, a segunda “vitória” dos que eram obrigados a reunir-se às escondidas, no escuro das noites, longe do policiamento do feitor cruel e desumano, acabou por ser conhecida como Lei dos Sexagenários, que retirou da condição de escravos os negros que completassem, a partir dali, 60 anos de idade. Não importavam mais como “força de trabalho” e por isso nem houve tanta resistência dos fazendeiros e dos nobres, como se dera com a norma anterior, de libertação dos nascituros.
As dificuldades políticas da monarquia permaneciam e se agravavam, com movimentos que começavam a plantar e defender ideias republicanas, de extinção do Império, portanto, e se fazia mais forte a pressão pelo fim do regime escravocrata, até que em 13 de maio de 1888, onze anos antes da sucumbência do regime, a princesa Izabel, em nome do Imperador Pedro II, assinou a Lei 3353, com dois artigos: o primeiro, declarando extinta a escravidão no Brasil e o segundo, revogando as disposições em contrário.
Terminava ali a submissão rude, cruel e indigna dos negros escravos, pelo que tanto lutara Zumbi dos Palmares, com sua Dandara, símbolos da negritude valente, competente e capaz, ele morto em 20 de novembro de 1695, aos 40 anos, e que não viveu, portanto, para celebrar a Lei Áurea, mas há de ter feito tocar tambores e atabaques no plano espiritual que habitava então.
O dia consagrado à consciência negra não é, entretanto, o da lei assinada por Izabel, submissa às forças políticas emergentes, mas o da morte do grande líder, que plantou no Quilombo dos Palmares a liberdade em seus sonhos mais ousados da negritude escrava. E assim é porque a lei, a norma nela escrita, que é naturalmente fria e socialmente inerte, não tem o poder de operar a mudança cultural, muitas vezes nem de a induzir. Libertos, os negros não foram sujeitos de políticas públicas inclusivas, que os reconhecessem iguais, o que nem mesmo conseguiu o artigo 5º de nossa Constituição ao firmar a igualdade como princípio radial de seu texto, mas creio possível que a reserva de vagas raciais nas universidades públicas esteja a contribuir para a indispensável mudança.
Domingo próximo, 20 de novembro, é Dia da Consciência Negra no Brasil de Maria Firmina dos Reis, professora que com seu livro “Úrsula”, acabou inspirando o “Escrava Isaura” de Bernardo Guimarães. No Brasil de Luís Gama, escritor e rábula que atuou pela libertação de escravos com fundamento na Lei Feijó, de 1831, ou do marinheiro Francisco Nascimento, que liderou a resistência ao transporte de escravos do nordeste para o sul do país. Do Brasil de Maria Tomásia, que ajudou a fundar a Sociedade Cearense Libertadora, de José do Patrocínio, que usou os dons de jornalista, escritor e orador para defender o fim da escravatura nos idos de 1882, de Joaquim Nabuco, advogado, jornalista e político de influência na Corte, ou, dentre tantos outros, de Machado de Assis, o acadêmico por excelência.
Mas tanto tempo depois, o Brasil ainda não consagrou a igualdade e a liberdade que inspirou tantas lutas. Já escrevi aqui sobre o assassinato crudelíssimo de João Alberto, acusado de suspeita de furto, em supermercado de São Paulo, só porque era negro, tal como se dera nos Estados Unidos com um joelho cruel que, em plena rua, levou à morte um homem negro que, preso pela polícia dos brancos, pedia para respirar, e em agosto de 2020 registrei que uma Juíza de Direito – que no mínimo por dez semestres letivos há de ter frequentado curso de graduação em que lhe devem ter sido ensinadas noções de manuseio, de consulta e de interpretação de códigos, de leis extravagantes e, principalmente, de regras constitucionais, além de princípios e teorias pertinentes – usou a máquina moderna de escrita para, em mais de cem laudas, proferir sentença condenatória contra réus acusados de crimes diversos, inclusive formação de quadrilha, e na peça que lhe deve ter custado horas de trabalho intelectual, penso, acabou por também praticar, não com joelho mas com dedos indispensáveis à digitação, ato semelhante ao do policial americano, bradando discriminação odiosa e criando, como se pudesse pela função que exerce, nova circunstância de agravamento de pena: a raça. Em mais de uma lamentável e esdrúxula dedução, a “aplicadora da lei”, paga pelo Estado para garantir a segurança jurídica até para os que são acusados, afirmou, segundo amplamente divulgado pela imprensa, que determinado réu havia de integrar a quadrilha por cuja formação o condenava “em razão de sua raça”, argumento que usou para exasperar a pena-base que lhe impôs.
É preciso que ecoemos, no coração e na mente de cada um de nós, e dos nossos, a convicção de que somos iguais e que a luta pela igualdade não deve reportar-se, por hipótese qualquer, à cor da pele.
Na segunda-feira próxima, vou receber homenagem da Procuradoria Geral do Estado, cujos quadros integrei por quatro décadas, sem considerar os três anos em que atuei como procurador voluntário, para festejar, junto como tantos outros, os 50 anos dessa Instituição que, sem dúvida qualquer, honra o Amazonas. Pois bem, com permissão do nobilíssimo Procurador-Geral do Estado, doutor Giordano Bruno, e dos demais colegas que palmilharam o caminho pedregoso da construção de nossa Procuradoria, rendo homenagem ao eminente doutor Moacir Silva, primeiro Procurador do Estado negro do Amazonas, com quem tanto aprendi.
Lourenço Braga, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
lourencodossantospereirabraga@hotmail.com