
Mesmo proibido pela Justiça, o Departamento Estadual de Trânsito do Amazonas (DETRAN-AM) seguiu praticando atos de execução do contrato de emplacamento veicular que havia sido suspenso por decisão judicial.
Registros oficiais obtidos pela reportagem confirmam que, mesmo sob a vigência de ordem judicial expressa, o órgão prosseguiu com o contrato e habilitou a empresa vencedora junto à Secretaria Nacional de Trânsito (SENATRAN) — etapa indispensável para a execução do serviço —, e desde o dia 17 de outubro passou a executar o serviço por meio da empresa questionada, apesar da liminar que determinava a paralisação imediata de todas as atividades relacionadas ao certame.
A decisão, proferida no Processo nº 0195513-51.2025.8.04.1000, que tramita na 4ª Vara da Fazenda Pública de Manaus, foi emitida após análise de fortes indícios de irregularidades no processo licitatório. O juiz Paulo Fernando de Britto Feitoza em análise liminar determinou a suspensão integral do contrato até o julgamento final da ação, citando falta de comprovação do capital mínimo exigido, inconsistências contábeis e fragilidade nos atestados de capacidade técnica da empresa vencedora, a Innova Placas.
Apesar da decisão, o presidente do DETRAN-AM, David Fernandes, manteve o andamento do contrato. Especialistas em direito público ouvidos pela reportagem afirmam que a conduta configura descumprimento de decisão judicial, que, em tese, pode configurar crime de desobediência, de responsabilidade e improbidade administrativa, inclusive com possibilidade de afastamento do gestor e desclassificação e inidoneidade da empresa contratada.
“Não há margem de dúvida: a liminar estava válida e publicada. Qualquer ato que contrarie sua determinação é uma afronta direta à Justiça”, afirmou uma fonte com acesso ao processo.
O atual presidente do DETRAN-AM, David Fernandes, é também secretário-geral do Partido Progressistas (PP) e considerado braço direito e principal articulador político do delegado Rodrigo Sá, ex-presidente do órgão, atual vereador de Manaus e presidente estadual da sigla. A relação política e de confiança entre ambos é apontada como determinante para a indicação de Fernandes ao cargo, após a saída de Sá para disputar as eleições.
O episódio reacende o debate sobre transparência e controle nas contratações públicas do DETRAN-AM e levanta questionamentos sobre a efetividade da fiscalização das decisões judiciais que envolvem licitações de grande porte no estado.
A conduta do órgão deve ser analisada pelo Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM) e por órgãos de controle, diante da suspeita de descumprimento de ordem judicial e possível favorecimento empresarial.
O caso reforça preocupações sobre a influência política e o uso do DETRAN como instrumento de poder, em detrimento da segurança pública, da moralidade administrativa e do interesse coletivo.
ENTENDA O CASO
Em 2024, o DETRAN-AM lançou o Edital nº 580/2024 para contratar uma empresa especializada em emplacamento veicular para assumir o serviço público de todo o Estado do Amazonas.
Por se tratar de um serviço que impacta diretamente a segurança pública e o cidadão, o edital exigia que a futura contratada comprovasse capacidade técnica e operacional compatível com a frota expressiva do estado, além de experiência comprovada na atividade.
O documento previa também um teste prático, a chamada Prova de Conceito (POC), para verificar se o sistema e os equipamentos atendiam aos padrões técnicos dos órgãos federal e estadual.
Antes da assinatura do contrato, haveria ainda vistoria presencial na sede da empresa, para confirmar estrutura física, maquinário e equipe — medidas essenciais para evitar o velho golpe das “empresas de gaveta”.
Mas o que aconteceu surpreendeu até servidores experientes. Após o pregão, o DETRAN-AM classificou como vencedora a empresa E.O.S & C. LTDA., contratada do governo estadual por sua “larga experiência” em… matar baratas.
Sem qualquer histórico em emplacamento veicular e com capital social abaixo do exigido, a empresa não foi inabilitada nem desclassificada. Em vez disso, o órgão promoveu sucessivos adiamentos da prova-teste e da vistoria técnica, até que um recurso fora do prazo, apresentado pela Innova Placas, levou o DETRAN a anular todo o processo e lançar um novo edital — o nº 144/2025.
Na contramão das próprias exigências, o novo edital flexibilizou os critérios de segurança: eliminou a vistoria técnica e reduziu drasticamente as exigências de experiência.
Se antes era preciso comprovar capacidade para atender 30% da demanda anual (cerca de 34 mil emplacamentos), o novo texto passou a exigir apenas 10% da média mensal — o equivalente a menos de mil placas. Um número considerado irrisório diante de um contrato que pode ultrapassar R$ 200 milhões e envolver mais de 1,2 milhão de serviços de emplacamento em todo o estado.
No novo processo, a Innova foi declarada vencedora, mas o teste prático voltou a ser marcado por adiamentos e remarcações de última hora, até ser realizado de forma virtual — sem presença física dos técnicos da empresa e demonstração efetiva dos equipamentos.
Concorrentes denunciaram que a prova não seguiu o edital, e que a empresa não comprovou a capacidade técnica exigida. Mesmo assim, o DETRAN considerou a empresa aprovada, homologou o resultado e assinou o contrato.
O caso chegou à Justiça, e o juiz Paulo Feitosa identificou indícios robustos de fraude, direcionamento e favorecimento, determinando a suspensão integral do contrato e de todos os seus efeitos.
Documentos públicos confirmam que a Innova — vencedora do contrato milionário — era, até então, uma pequena estampadora de placas sediada no interior do Rio Grande do Sul, sem estrutura para atuar no serviço de emplacamento veicular. Mesmo assim, foi contratada para atender todo o território amazonense, que possui dimensões e desafios logísticos incomparavelmente maiores. Pelo menos é o que dizia o órgão no Edital.
A disparidade entre o porte da empresa e o tamanho do contrato levantou alerta entre especialistas, que apontam risco de execução precária, prejuízo ao erário e ameaça à segurança dos cidadãos.
DESCUMPRIMENTO E RISCO À POPULAÇÃO
Mesmo com a liminar em vigor, o DETRAN-AM seguiu com o contrato, habilitou a empresa e passou a executar o serviço, colocando em risco a legalidade do processo e a segurança viária do Estado. A conduta, segundo juristas, pode caracterizar crime de desobediência, crime de responsabilidade e improbidade administrativa.
“É um ato que precisa ser apurado com rigor”, avaliou um advogado ouvido pela reportagem. “Quando uma decisão judicial é ignorada, quem perde é o cidadão e o próprio Estado de Direito.”
ESCÂNDALOS EM SÉRIE
O caso se soma a uma série de escândalos recentes que vêm marcando a atual gestão do Estado. Recentemente, o Ministério Público e a Controladoria-Geral da União (CGU) deflagraram a Operação Metástase, que apura fraudes e desvio de recursos públicos na saúde do Amazonas, envolvendo contratos milionários e suspeitas de superfaturamento.
A sucessão de episódios — da saúde ao DETRAN — reforça o padrão de descontrole e de uso político da máquina pública, revelando relações obscuras e contratos vultosos que ferem o interesse coletivo.
Agora, os holofotes se voltam para o Detran — e o roteiro parece o mesmo: contratos vultosos, suspeitas de direcionamento e influência política.
Nessas circunstâncias, fica evidente que quem está perdendo é o povo do Amazonas. O que ainda precisa ser descoberto — e vir à tona — é quem está ganhando com isso.




