Entrevista: “A Educação Física é a disciplina que tem maior capacidade de ser inclusiva”

Brazil vs Slovenia during the 1st IHF Four-a-Side Wheelchair Handball World Championship in Cairo, Egypt, 22.09.2022, Mandatory Credit © Sasa Pahic Szabo / kolektiff IHF Photographer Guilherme Lourenço

O esporte pode transformar vidas, disso já sabemos. No caso das pessoas com deficiência (PCDs), ele cumpre um papel ainda mais importante, ao contribuir para o fortalecimento físico e mental, promovendo a socialização e o desenvolvimento da autoestima. Para falar sobre o assunto com mais propriedade, convidamos o Prof. Dr. Flávio Melo [CREF 001372-G/AL], coordenador do Comitê de Handebol Adaptado da Confederação Brasileira de Handebol (CBHb). Com vasta experiência na área, Dr. Flávio Melo é professor do Instituto Federal de Alagoas (IFAL), onde também atua como Coordenador do Núcleo de Atendimento às Pessoas com Necessidades Específicas (NAPNE), é membro do Grupo de Trabalho de Handebol em Cadeira de Rodas da International Handball Federation (IHF), e presidente do Grupo de Trabalho de Handebol em Cadeira de Rodas da Confederación Sur y Centro America de Balonmano (COSCABAL).

Confira a entrevista com especialista a seguir.

Revista Educação Física – Como a Educação Física entrou na sua vida?

Dr. Flávio Melo – A Educação Física entrou na minha vida ainda na infância, por meio dos jogos e brincadeiras, e se fortaleceu por conta do esporte. Inicialmente, eu tive contato com os esportes individuais, como judô, e em seguida com o handebol – que foi onde eu me encontrei enquanto atleta, e amo até hoje. A partir dessas experiências, eu dei sequência à minha formação. Na graduação, no entanto, eu compreendi que a Educação Física é muito mais que esporte. Abri a mente e passei a entender o quanto à Educação Física depende dos aspectos pedagógicos, entre tantos outros, a fim de interver positivamente na vida e na formação do indivíduo de forma mais ampla.

Revista Educação Física – Quando e como iniciou a atuação com o esporte adaptado?

Dr. Flávio Melo – Na graduação, nós temos uma disciplina de Educação Física adaptada, que foi fundamental para eu começar a ter uma aproximação com PCDs, tendo tido a oportunidade de estagiar com pessoas com deficiência física, intelectual, visual e cega. E essa aproximação foi tanta, que entrei em um grupo de estudos na universidade, essencial para que eu pudesse seguir realizando pesquisas e trabalhando com projetos de extensão. O meu trabalho de conclusão de curso (TCC), inclusive, consistiu em um estudo sobre a situação doz esporte adaptado no município de Maceió, em Alagoas. O trabalho me direcionou a continuar estudando e trabalhando no segmento.

Inicialmente, eu tentei iniciar um projeto de handebol em cadeira de rodas em Alagoas, mas não foi possível no momento. Eu só viria a conseguir realizar esse projeto em São Paulo, no projeto de mestrado, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Quando eu cheguei, já existia um projeto de extensão, que é o Projeto de Atividades Físicas, Esportivas e de Lazer, adaptadas às Pessoas com Deficiência (PROAFA/UFSCar), coordenado pela Profa. Dra. Mey van Munster [CREF 000835-G/SP]. Ali eu comecei a trabalhar com iniciação esportiva em cadeira de rodas e posteriormente passei a coordenar o programa. Por meio dele, tínhamos a possibilidade de trabalhar com o esporte em uma outra vertente, tanto com a reabilitação quanto com o rendimento. Fomos campeões paulistas, o que me abriu as portas para vir a me tornar auxiliar técnico da seleção brasileira no primeiro mundial de 2013.

Na sequência, iniciei o doutorado, tendo desenvolvido um instrumento de avaliação para iniciação esportiva em cadeira de rodas (protocolo avaliativo de iniciação esportiva em cadeira de rodas), que está disponível na internet. Hoje em dia, desenvolvo um projeto de Handebol em cadeiras de rodas no IFAL, em Maceió, em parceria com o Governo do Estado para desenvolvimento do esporte não apenas em Alagoas, mas em todo o Brasil.

Revista Educação Física – Pode falar um pouco mais sobre o handebol adaptado?

Dr. Flávio Melo – Quando a gente fala em Handebol Adaptado, é preciso entender que há várias formas de adaptação, o Handebol em Cadeira de Rodas é uma delas, mas há várias vertentes. A modalidade se diferencia do handebol indoor, por ser jogado na cadeira de rodas esportiva, a qual é feita sob medida, tendo em vista que cada atleta possui características distintas, diferentes corpos e tipos de lesões e deficiências. Além disso, a trave apresenta um tamanho reduzido (1,70m x 3,00m), considerando que o goleiro também se utiliza da cadeira de rodas como dispositivo de locomoção na prática da modalidade.

O Handebol em Cadeira de Rodas (HCR) atualmente tem duas formatações oficializadas pela Federação Internacional de Handebol (IHF): o HCR4 – modalidade criada no Brasil, pelo Prof. Dr. Décio Roberto Calegari, e jogada inicialmente na América do Sul e Central, e o HCR6, modalidade criada e jogada inicialmente na Europa

Revista Educação Física – Como o esporte pode atuar na vida das pessoas com deficiência?

Dr. Flávio Melo – O esporte tem um potencial transformador diferenciado na vida de PCDs, seja essa deficiência adquirida ou congênita. Ele capacita e mostra uma potencialidade que as vezes o próprio indivíduo ou a sua família desconhecia. Em muitos casos, os pais superprotegem os filhos e, na fase adulta, ao procurar o esporte, esses desenvolvem maior independência e autonomia. Por meio do esporte, essa pessoa ganha habilidade, mobilidade, e força necessária para tocar sua vida com independência. O esporte também possibilita essas pessoas conhecerem seus pares, com diferentes histórias e vivências. Se a pessoa adquire uma deficiência, como num acidente, por exemplo, muitas vezes é o esporte que atua na reabilitação, e a ajuda a transpor seus limites, conhecendo novos lugares, novas pessoas, e até tornando-a um atleta. Muitas vezes a pessoa adquire uma deficiência, passa pelo processo de reabilitação, pelo processo depressivo, ao se ver em um corpo novo, e o esporte ajuda no fortalecimento físico e mental. É um motivo de muito orgulho poder vivenciar essa transformação do ser humano por meio do esporte.

Revista Educação Física – E como se dá a atuação do Profissional de Educação Física na promoção da atividade física inclusiva?

Dr. Flávio Melo – A Educação Física é a disciplina que tem a maior capacidade de ser inclusiva, e eu não refiro unicamente à inclusão de PCDs, mas a toda a diversidade de pessoas que chega ao ambiente escolar, à academia, ao treinamento esportivo, e por aí vai. A partir do momento que eu tenho um aluno com obesidade mórbida, por exemplo, eu preciso adaptar a minha aula. Caso contrário, pode ser que esse aluno não esteja preparado para acompanhar a atividade. Quando eu tenho a clareza que existem pessoas com gêneros, capacidades e deficiência distintos, eu preciso ser inclusivo. Então, sim, eu preciso fazer adaptações e ajustes para atender a todos, seja nos materiais, nos equipamentos, na metodologia de ensino, no espaço físico. E essas adaptações são realizadas para inclusão não apenas de PCDs.

Revista Educação Física – Há melhorias a serem feitas para inclusão de pessoas com deficiência no esporte e na sociedade em geral? Quais?

Dr. Flávio Melo – Sempre há melhorias a serem feitas. Dentro da sociedade em que vivemos, está claríssimo que o ambiente não foi feito para a diversidade. Nós vivemos num mundo em que a estrutura de toda a sociedade foi pensada, inicialmente, para pessoas dentro do padrão. Então a gente vê muitas barreiras arquitetônicas, mas principalmente atitudinais, que são muito perigosas. As barreiras atitudinais excluem de maneira muito danosa, com discriminação, preconceito e bullying. Então é importante frisar a existência dessas duas barreiras, mas também reforçar a necessidade de um desenho universal, para inclusão dessas pessoas na sociedade. No ambiente escolar, é preciso verificar todas as capacidades e possibilidades de ensino, considerando as diferentes formas de aprendizado dos alunos.

O desenho universal é algo importante a se ressaltar, assim como a acessibilidade. Quando falamos de acessibilidade, não estamos falando apenas da arquitetônica, mas também da acessibilidade ligada às questões de informação, de tecnologia, e por aí vai. Pensar em acessibilidade é o caminho para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e menos desigual. Uma sociedade que seja preparada para os diferentes, pois o direito para os diferentes não pode ser igual. O direito para os diferentes precisa ser diferente.

Em relação ao esporte, a gente precisa desenvolver não só os paralímpicos, mas também os adaptados. No caso do Handebol em Cadeira de Rodas, por exemplo, a gente precisa cada vez mais de fundos de desenvolvimento para essas pessoas, para se desenvolver esportes que não são paralímpicos mas que ocupam e possibilitam a prática para pessoas com deficiência em geral. Esses são aspectos fundamentais a serem desenvolvidos, que devem ser pensados, para um currículo educacional, mas também para uma forma de educar a sociedade para o desenvolvimento do esporte adaptado.

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